Lei não é a vontade do mais forte: uma perspectiva libertária
O papel da força na obtenção da lei

A frase “a lei não é a vontade do mais forte” ressoa como um princípio universal, pois relaciona perfeitamente a ideia de que ser poderoso não torna inerentemente as ações de alguém justas. A maioria das pessoas concorda intuitivamente com esse conceito. De fato, sugerir o contrário provavelmente provocaria suspeitas e, se levado à cabo, provocaria condenações. Uma pessoa que justifica suas ações apenas baseando-se em seu poder ou força seria vista como um mau elemento e evitada pelos outros.
No entanto, esse simples ditado pode nos dizer muito mais do que apenas como devemos agir em nossas vidas pessoais e contém verdades úteis sobre como uma sociedade livre ou libertária pode funcionar na prática. Afinal, o uso do termo “lei” dentro da frase implica a existência de uma moralidade objetiva – uma estrutura ética independente da dinâmica de poder em qualquer conflito. Esse conceito de moralidade objetiva serve como uma base importante para entender a justiça, a equidade e que tipo de cultura e instituições são necessárias para criar e sustentar sociedades livres.
O papel da força na obtenção da lei
Primeiro, alguns esclarecimentos são necessários. Embora “a lei não é a vontade do mais forte” seja um princípio nobre, os conflitos do mundo real geralmente revelam que a lei ainda requer força para prevalecer. Se uma parte agredir outra, a parte vitimizada ainda deve controlar recursos suficientes – sejam materiais, institucionais ou comunitários – para fazer valer sua reivindicação. A justificação moral por si só não obriga necessariamente os agressores a cessar suas ações ou fazer as pazes.
De fato, a vantagem de uma sociedade livre não é que ela elimine a necessidade da força – os libertários não são utópicos – mas sim que ela torna a força mais acessível para aqueles que a merecem e menos acessível para aqueles que não a merecem. Imagine uma sociedade onde as disputas são resolvidas puramente através da força, sem qualquer apelo à moralidade. Em tal sociedade, a parte prejudicada sempre precisaria de uma força esmagadora para garantir a justiça, algo que nem todas as partes prejudicadas podem ter. Agora considere uma sociedade que valoriza a moralidade. A vítima ainda precisa de recursos para fazer valer suas reivindicações. A diferença está nos sistemas de apoio disponíveis: uma sociedade que defende os princípios morais permite o uso de mecanismos institucionais – como tribunais e agências de aplicação da lei – para apoiar a parte justa, ao mesmo tempo em que priva o agressor de tais vantagens.
Assim, embora a força não sirva de justificativa para as ações, geralmente é necessário traduzir o direito moral em realidade prática.
Instituições de justiça em uma sociedade livre
Em nosso mundo, atores intencionais fazem uso de recursos escassos, incluindo seus próprios corpos e outras propriedades às quais têm direito. Os conflitos surgem quando indivíduos ou grupos disputam reivindicações sobre esses recursos. As leis, portanto, existem para fornecer regras para resolver tais disputas de maneira moralmente correta.
De acordo com o teólogo e filósofo do século XIII, Tomás de Aquino, a virtude da justiça está em “dar aos outros o que lhes é devido”. Para que as leis sejam justas, elas devem estar alinhadas com padrões morais objetivos, pressupondo que a retidão ou a bondade são detectáveis. Sem a existência de moralidade objetiva, nenhuma resolução poderia ser considerada universalmente preferível, essencialmente deixando todas as resoluções de disputas ambíguas e deixando a sociedade em um paradigma insatisfatório de “a lei é a vontade do mais forte”.
Uma sociedade verdadeiramente libertária ou livre deve, portanto, estabelecer instituições amplamente respeitadas para descobrir resultados moralmente justos em disputas e impor esses resultados. Mas como os resultados moralmente corretos podem ser determinados objetivamente em primeiro lugar?
Argumentação e o princípio da não-agressão
A moralidade objetiva é descoberta de forma mais eficaz por meio da argumentação – um processo sistemático de raciocínio para apoiar ideias ou ações. A argumentação é inerentemente pacífica e pressupõe certos padrões morais, como o reconhecimento dos direitos de propriedade. Por exemplo, os participantes devem possuir seus corpos e os recursos necessários para sustentar sua participação na argumentação. Além disso, ao se engajar na argumentação, os indivíduos aceitam implicitamente o princípio da não agressão (PNA), que afirma que o uso da força sem prévia provocação contra a pessoa ou propriedade de outra pessoa é inerentemente errada. A força só se justifica quando se opõe à agressão ou à sua ameaça iminente.
Isso ocorre porque argumentar a favor da agressão é autocontraditório, pois qualquer regra baseada na agressão contradiz a premissa pacífica da argumentação e não pode ser considerada justa. Argumentar contra o uso do argumento para resolver disputas e, ao mesmo tempo, se envolver na argumentação é uma contradição performativa e lógica. Se alguém realmente acreditasse na agressão sobre a razão, simplesmente agiria de acordo com essa crença sem recorrer à argumentação em primeiro lugar.
Ao se comprometerem a descobrir o resultado mais justo no caso de uma disputa por meio da argumentação, os participantes estão automaticamente no caminho certo e precisam apenas levar em conta todos os fatos relevantes e ser consistentes em seu raciocínio ao longo do caminho, a fim de fornecer uma resolução objetivamente moral para o conflito em questão.
Uma estrutura libertária de justiça
Para que uma sociedade libertária funcione, um número suficiente de seus membros e instituições deve priorizar a descoberta de decisões justas que sejam consistentes com o princípio da não-agressão ao invés de com o uso irracional da força. Quando isto ocorrer, aqueles que buscam justiça genuína descobrirão que são capazes de mobilizar mais força, ou poder, em seu favor do que seus adversários transgressores.
Em tal sociedade, os juízes poderiam ser escolhidos com base em suas reputações e históricos associados à decisões justas. Esses juízes então arbitrariam disputas e as agências de execução, também escolhidas por suas capacidades, agiriam dentro dos limites da decisão de um juiz para obter o resultado desejado.
Quando aplicada de forma consistente, essa abordagem tem implicações políticas significativas, principalmente que nenhuma instituição, incluindo um governo, deteria o monopólio da força ou da justiça, pois isso exigiria um ato de agressão por parte do governo para suprimir provedores alternativos desses serviços. Quaisquer órgãos governamentais precisariam, portanto, operar apenas por meio de consentimento mútuo e adesão ao princípio da não agressão, tornando-os mais parecidos com associações de proprietários, operadores de shoppings ou sociedades de ajuda mútua do que os estados irresistíveis contra os quais lutamos hoje.
Esse resultado descentralizado garante que nenhuma entidade única exerça poder irrestrito. Juízes e agentes de aplicação da lei obteriam legitimidade de sua adesão a padrões morais objetivos, não de decretos estatais. Qualquer tentativa de um órgão governamental de atuar como juiz e executor, especialmente em seus próprios conflitos, minaria sua credibilidade e arriscaria sofre rejeição da sociedade.
O financiamento para esses serviços privados de julgamento e execução só poderia ocorrer voluntariamente. Embora o financiamento de caridade seja possível na maioria dos casos, é mais provável que seja financiado pelas partes que fazem uso dos serviços necessários, diretamente ou por meio de apólices de seguro ou alguma outra forma de financiamento. Dada a ausência de um monopólio estatal e a possibilidade de vários provedores, a dinâmica do mercado livre provavelmente garantirá que o custo e a qualidade dos serviços de julgamento e execução sejam constantemente otimizados para o benefício dos consumidores.
Os pré-requisitos culturais da liberdade
A teoria libertária não prescreve uma estrutura completa de cultura ou estilo de vida, mas permite a proliferação pacífica de infinitas maneiras de viver. No entanto, não importa a forma que uma sociedade livre possa assumir, em sua essência, a liberdade requer uma cultura intelectual e espiritual em toda a sociedade que valorize a justiça e a razão sobre a força bruta para sobreviver. Para que a liberdade floresça, indivíduos e instituições suficientes devem adotar o princípio de que uma moralidade objetiva é detectável, que a lei não é a vontade do mais forte e agir de acordo. Tal cultura garantiria que a força geralmente ficassem do lado da lei, garantindo que uma condição geral de paz e segurança prevalecesse.
Historicamente, as sociedades influenciadas pelo cristianismo forneceram um terreno fértil para tais preferências culturais. A crença de que a moralidade se origina de um Deus atemporal, justo e amoroso, e não de construções humanas, pode explicar por que a civilização ocidental – apesar de muitas interrupções de tiranos, déspotas e ideologias anti-liberdade – frequentemente pendeu para a liberdade.
Hoje, conquistar corações e mentes é essencial para promover a liberdade. Os defensores do libertarianismo não devem se concentrar apenas na política e na teoria econômica, mas também promover uma cultura de justiça racional e rejeitar as tendências ao relativismo e ao niilismo que assolam nosso atual cenário intelectual e cultural. Se forem bem-sucedidos, esses esforços garantirão que, quando surgirem oportunidades para reduzir o poder do Estado, elas sejam aproveitadas e utilizadas de maneira proveitosa. Uma sociedade livre e todas as vantagens que ela traz dependem não apenas de suas instituições, mas também da vontade coletiva de seu povo de viver de acordo com o ditado “a lei não é a vontade do mais forte”, não importa o quão atraente possa parecer o caminho de ceder ou participar da agressão.
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