Rosivaldo Casant

DANÇANDO NA CHUVA
“Dançando na chuva” a la Gene Kelly, na água que desce pelo meio-fio, com os amiguinhos da infância; escorregar por barranco enlameado; molhar os cabelos e as roupas numa chuva de verão, ou não

DANÇANDO NA CHUVA
Tem coisa mais gostosa? Perigosa, sem dúvida nenhuma, mas nós adorávamos! Lembro-me que quando chovia, eu, meu irmão e mais alguns garotos bloqueávamos a água que descia pelas guias da rua asfaltada com as costas, formando uma espécie de chafariz, sem o glamour, claro, de uma Fontana di Trevi; acho que fomos nós que inventamos a hidromassagem! Sabíamos que tomaríamos umas chineladas das mães, porque elas temiam que fôssemos alcançados por algum raio caçador de crianças traquinas (que ainda não eram as famosas bolachas) ou fôssemos contaminados por um possível vazamento de esgoto. Mesmo com o risco, não da contaminação ou raios que nos partissem, mas das havaianas em nossas bundas, sempre valeu muito a pena essa diversão; e olha que havaianas eram chinelos chumbregas e não da fashion week, como nos dias de hoje.
Chuva torrencial traz-me à memória, entre tantos dias molhados, um em especial, há quase cinquenta anos, no qual voltávamos para um cantinho sertanejo chamado Anhuminhas, entre Tarumã, Pedrinhas e Maracaí, de onde tínhamos partido a pé porque nos desencontramos dos parentes do meu amigo Ademir, com os quais voltaríamos confortavelmente de carro. Foram mais de vinte quilômetros amassando o barro da estrada (sem essa de reclamar da poeira do caminho!). Havíamos começado o percurso por volta das quatro horas da tarde e depois de duas horas de caminhada sob aquela ducha da natureza, ora forte, ora mais branda, começamos a sentir fome, mas tínhamos mais outras duas horas até poder saborear o maravilhoso jantar da dona Florinda. Passávamos pelo meio de uma propriedade em que a colheita de amendoim havia sido feita naqueles dias e o efeito colateral era terem ficado grudadas nos pés arrancados muitas vagens preservadas e com grãos. Comemos, enchemos os bolsos e seguimos mastigando e andando porque havia muito que caminhar e a escuridão não tardaria a chegar. A chuva foi diminuindo e quando chegamos ao destino até nossas roupas tinham pouca umidade. Ah! Aquela comida saborosa nos esperava e nos fez esquecer o gosto forte do amendoim cru.
As experiências pessoais relatadas nos parágrafos anteriores não devem ser só minhas e, por certo, alguns leitores se verão em cenários muito parecidos aos apresentados; obviamente, com nuanças personalizadas por cada um. Alguém poderá acrescentar o barranco encharcado e a criançada descendo, como num tobogã, encardindo toda a roupa que a mãe lavaria, depois de umas lapadas com a cinta do papai. Uma folha de bananeira ou um papelão surrupiado de casa, ajudavam na brincadeira e amenizar a sujeira que impregnava a roupa.
Poderíamos tratar aqui das inúmeras vezes em que fomos surpreendidos por uma chuva passageira enquanto passeávamos na praia ou em um parque numa manhã ou tarde quente de verão, com a namorada, com amigos, ou sozinhos.
Até aqui, tudo parece ter uma pegada poética. Contudo, o tema passa à prosa e sem poesia, quando vamos nos aproximando do mês de maio e recordamos a quantidade de chuvas e a falta de escoamento das águas no Rio Grande do Sul no ano passado. Morros vieram abaixo, ruas desapareceram, casas submergiram, pessoas, animais e coisas levados pela correnteza; aeroportos, portos e estádios inutilizados; plantações perdidas, sem uma vagem de amendoim para ser colhida; sem uma comida saborosa à espera e um banho quente para diminuir o sofrimento; lágrimas de desespero, desalento, se misturando à caudal, até as ruas virarem rios, as cidades virarem lagos e se misturarem com o mar. Lembro-me de amigos na Praia Grande, com parentes no sul, se mobilizando e nos chamando ao trabalho solidário de arrecadar roupas e gêneros alimentícios para que essas pessoas levassem. Oramos pelos nossos irmãos de lá, sabendo que só roupas não dariam conta de aquecer corações tão feridos.
Quando saí hoje para passear pela praia com nosso filho pet aqui de Ilha Comprida, agradeci aos céus pela benção da chuva que caiu sobre nós; agradeci pelo peixe que o mar colocou junto a mim e que será uma comida saborosa qualquer dia desses. Contudo, não pude deixar de pensar na chuva que varreu parte do sul do nosso país.
“Dançando na chuva” a la Gene Kelly, na água que desce pelo meio-fio, com os amiguinhos da infância; escorregar por barranco enlameado; molhar os cabelos e as roupas numa chuva de verão, ou não, numa praia, na rua ou numa casinha de sapé, tudo bem, lava a alma. A natureza segue suas leis, seus ritos, sua cronologia e temos que tê-la a nosso favor, servindo-nos de sua força; jamais bloqueando seu caminho. Aos nossos irmãos que perderam pessoas queridas, suas casas, seu trabalho e tiveram que refazer seus projetos, hipotecamos nossa solidariedade; mais que isso, nosso amor! Que a prosa da vida não nos tire a poesia que a memória nos permite recuperar e cultuar para suavizar a vida no planeta azul!
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