Rosivaldo Casant

CACHORRO AMIGO OU AMIGO CACHORRO
Se vê que a linguagem conotativa, embora necessária para dar mais graça ao idioma, coloca os animaizinhos em situação vexatória; não é só com o cão, mas, nessa crônica, é desse “serumaninho” que quero falar

CACHORRO AMIGO OU AMIGO CACHORRO
Homenagem à Nina
O jogo com as palavras sugerido pelo título poderá remeter a muitas situações vividas por qualquer um de nós, nas quais amigos traíram a nossa confiança e o que deveria ser bem substantivo se tornou um adjetivo revelador de mau-caratismo, de sujeito cafajeste, canalha calhorda, patife, desonesto, velhaco etc., etc., etc. ... Acho que deveríamos mudar essa interpretação, aproveitando a moda do politicamente correto e tirar o nome do bichinho, encapsulado nesse sentido figurado e que é exatamente o oposto dos adjetivos atribuídos ao animal, como a lealdade, o carinho, a proteção, a inteligência, a alta capacidade de aprendizagem e a de serem excelentes companheiros para pessoas de diferentes idades. Isso ocorre com outras expressões relacionadas a outros animais: “seu burro!”, ou “seu besta” são referências a alguém desprovido de inteligência; “sua vaca”, “sua galinha”, “fulano é uma raposa”, “ela é uma cobra”, ou “uma víbora”, “sicrano é um cabeça de camarão”, “beltrana é uma lambisgoia”. Se vê que a linguagem conotativa, embora necessária para dar mais graça ao idioma, coloca os animaizinhos em situação vexatória; não é só com o cão, mas, nessa crônica, é desse “serumaninho” que quero falar, do bem que nos faz e da saudade que passamos a sentir quando partem.
Desde que estamos casados, tivemos vários cachorros, todos maravilhosos seres, que nos acompanharam e ao nosso filho, nos momentos de alegrias e naqueles em que nos sentimos desamparados. A Laika, uma Collie, foi a grande amiga do filhão na infância e parte da adolescência, ajudando-o a superar as perdas e fortalecendo sua autoestima. A Hanna, uma Pastor, muito temperamental, mas sempre atenta aos nossos movimentos e, acima de tudo, aos das outras pessoas não reconhecidas por ela como totalmente confiáveis para nós da sua matilha. O Czar, filho da Hanna com um amor da raça Belga, era a meiguice em estado puro; carinhoso com as crianças e quando eu o chamava para erguer-se nas patas traseiras, as dianteiras, encostadas em meu peito, pareciam não estar me tocando no abraço; mas já fez muitos malandros correrem, acreditando que ele não era um cão de guarda, graças a Deus, da nossa guarda! A Greta, infelizmente, viveu menos de um ano e partiu, mas não teve menos amor nosso que os demais. A última Pastor foi a Shara, irmã da Greta; viveu exatos dez, quando, ao final do primeiro ano, a estimativa era de no máximo três. Contrariou os veterinários e, com sua meiguice, foi a companheira da patroa, melhor, da mãe, todas as tardes e fins de semana de um período em que a profissão acarretou problemas de saúde. Ela se foi e com ela também se foi o desejo de ter um novo pet em casa. Talvez seja interessante que se diga, todos os nossos queridos cachorros alcançaram os limites máximos da expectativa de vida canina.
Transcorridos não mais de dois meses, fui recebido em casa pela minha esposa, com o carinho de todos os dias e ela dizendo, apontando para cima:
— Sobe lá para o quarto e veja o que está na namoradeira. — Sinceramente, pensei tratar-se de um presente para mim, mas estávamos longe de qualquer data comemorativa que se referisse a mim. Desencanei e subi.
Não mais sobre o móvel indicado e, sim, sobre a nossa cama estava uma cadelinha caramelo, com olhinhos brilhantes, cada olho prolongado por um tracinho preto, como que marcado com lápis de maquiagem feminino, perninhas curtas e jeito de quem queria um afago meu. Brinquei com ela, claro. Perguntei onde minha esposa a havia encontrado e ela disse que foi a cachorrinha que nos encontrou, pois viu que, quando entrou na rua de casa, a viu correr atrás do carro e assim que o portão foi acionado, ela se lançou por debaixo dele e dominou o quintal como se já fosse área sua. Foi mais ou menos um mês no mesmo ritual.
Eu já estava conquistando a confiança de uma cadelinha preta, muito arisca, que a vizinha da frente, conhecida por salvar os animais com fome ou doentes da rua, estava alimentando. Era só um exercício para manter contato com algum cachorro, não pensava em adoção; dava ração que sobrara da Shara. Para mim, tinha ficado bem claro que a Tata havia sofrido muito com a morte do nosso último pet e não teríamos nenhum mais.
— O que você acha de adotarmos a cachorrinha, a Paulina? — Eu me surpreendi com a vontade dela e com o nome do animal, até então, desconhecido para mim. Ela me disse que os meninos a chamavam por esse nome na rua.
— Tudo bem se eu puder adotar a Neguinha (também sem nome, pelo menos até aquele momento). Ela topou e eu me encarreguei de verificar com a Maria, nossa vizinha que cuidava dos cachorros na rua, se ela sabia quem eram os donos da Paulina. Era mês de abril.
Exatamente no Dia das Mães de 2008, durante um churrasco que fazíamos em casa, recebemos das mãos da Maria, a Nina, nome sugerido pela sobrinha que morava conosco, pois já tínhamos decidido que Paulina não era nome para uma cachorra. E Nina é? Alguém pode perguntar. Não sei. Sobre nomes relatarei uma história um dia desses. Pois é, a Nina, a nossa Nina, chegou assim para nós, desse jeitinho e com as bênçãos da tutora Denise até então e do marido. Aliás, ela combinou com a Maria e veio a nossa casa para se certificar de que a Nina estava mesmo em boas mãos. Que bom que ainda existam pessoas com esse grau de comprometimento. Ela nos contou uma parte significativa da história da nossa pequena.
Segundo o marido, que trabalhava numa garagem de ônibus na região do Jabaquara, em São Paulo, a cachorrinha havia aparecido havia algum tempo; lá também tinha um Pitbull e à noite ambos eram soltos no pátio para afastar qualquer pessoa que pudesse trazer dano aos veículos ou ao pessoal da manutenção e limpeza durante toda a noite. Um ex-policial ou policial que fazia bico como segurança não gostava dos animais e os maltratava. A cachorra entrou no cio e não deu outra, emprenhou. O macho ficou mais agressivo com o vigia, percebendo o quanto ele era perigoso para sua parceira. Depois de várias ameaças, o vigilante atirou e matou o animal. Com um morto, os funcionários da empresa se preocuparam em cuidar da cadela, pois ela não poderia gestar e dar à luz filhotes tão grandes. Ela foi operada castrada e durante sua recuperação o tenebroso indivíduo a chutou. Daí, não restou outro jeito que não tirá-la daquele lugar e levá-la para o Riacho Grande, onde eles e nós morávamos. Tudo se conduziu para que ela fosse nossa e nós fôssemos dela, pois a ex-tutora já tinha três cachorros, presos em um espaço limitado, ao qual a Nina não se adaptava e, por isso fugia.
A Nina, muito provavelmente, teve uma família que a adestrou e incutiu nela bons hábitos, além de lhe dar muito carinho. Todos que vinham a nossa casa sabiam que ela tinha uma cadeira cativa à mesa e que seu comportamento era de uma “lady”, não colocando a cabeça sobre os pratos, comendo só pequeninos pedaços de algum alimento que eu ou a mãe dava. Nunca surrupiou um pedaço de bife, um empanado de frango ou de peixe. Muita gente poderia ter aprendido boas maneiras com ela, eu não tenho dúvidas!
Ela nos deu muitas alegrias. Subia a toda velocidade a escada em meio caracol para o quarto quando a chamávamos para que fosse ficar conosco; ou descia do mesmo jeito quando ouvia que havia pombas no quintal. Parou de latir e passou a nos indicar o que queria com curtos espirros. O tempo passou e os problemas de mobilidade chegaram. Ficou cega; depois, surda; foi perdendo as forças nas pernas; começou a usar fraudas. Mas o pior de tudo foi a demência, não nos reconhecendo mais. Sentimos tanto, mas ela insistiu, como a dizer: “ainda estou aqui”.
Sábado próximo passado, parafraseando a antiga canção “ela nos disse adeus e se foi”. Descansou. Sabemos que sim, descansou; mas, sabe aquele desejo de que durasse um pouquinho mais? O que sempre ficará conosco será a lembrança do seu olhar, seu corpo sobre o nosso tronco repousando, seu corpo se mexendo por baixo dos cobertores, escondida, para não ter que descer para sua caminha, talvez mais quente que a nossa, mas sem o nosso calor. Seu calor também nos fará falta, assim como tudo o mais que vivemos com esse anjo chamado Nina.
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