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São Paulo,08/03/2025

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Antonio de Paula Oliveira

Chuva de letras

A dança das letras

Antonio de Paula e arquivos
Chuva de letras Dia chuvoso em Goiânia Go.

Era uma manhã chuvosa e de temperatura amena que proporcionava um aconchego acolhedor, um momento oportuno inspirar e para destravar a escrita. Eu estava concentrado para desenvolver um romance há muito tempo iniciado e explorando um contexto tenso e cheio de incertezas, o que é ótimo para uma narrativa envolvente. 

O cenário era de um jornalista preso no interior do Camboja durante a guerra civil, provocada pelo tirano sanguinário Pol Pot em 1975 a 1979. A história oferecia uma ótima oportunidade para explorar temas como a ambiguidade da liberdade, a sobrevivência e o dilema psicológico em tempos de conflitos. O jornalista não conseguia discernir se estava sob custódia de uma força inimiga ou se permanecia a caminho para um campo de trabalho forçado. Os agentes do Khmer Vermelho eram de fatos seus captores ou condutores para um trabalho jornalístico sobre refugiados? Havia uma desconfiança e confusão mental do protagonista, diante dos últimos acontecimentos seus pensamentos perpassavam por um descontrole emocional. Ele se sentia coagido desde que deixou a capital Phnon Penh no comboio do comandante Chark Ri com o intuito de ir ao campo de trabalhadores onde cultiva arroz. A selva densa do Camboja e os horrores da guerra intensificavam as incertezas, enquanto seus próprios medos o tornavam cada vez mais frágil e desesperançoso.

Para o jornalista e escritor, a chuva podia ser apenas um pretexto para uma fonte cotidiana, uma inspiração poética ou o ritmo suave dos pingos que fluem, revelando a beleza captada por olhos atentos e transformada em palavras. No entanto, era essa linguagem líquida, cristalizada em emoções, que se converte em escrita.

A chuva caía lá fora trazendo alegria com um profundo alívio a população após o longo período de clima seco e intenso calor. Era como se o céu, por um instante, atendesse ao clamor da terra árida, quente e improdutiva, e, acima de tudo, à necessidade das pessoas. Não era uma tempestade, mas uma chuva insistente com respingar grossos e volumosos, que caía em cortinas sobre o asfalto. A chuva cobria a cidade com um manto acinzentado e com um frescor aliviante. 

Eu estava ali, em frente ao computador, tentando organizar as palavras que dançavam em minha cabeça, mas a escrita, com a sua habitual impaciência, não vinha. Conjurava com a minha capacidade, mais movida pela vontade do que pela capacidade intelectual. Às vezes, o cérebro não está disposto, ele não processa a nossa vontade de desenvolver a escrita. Melhor mudar o pensamento, engambelar a vontade de dar vida a escrita e aguardar outro momento de maior inspiração. A convite do barulho da chuva, decidi abandonar a tela e me afastar do fluxo de ideias que naquela manhã parecia mais um labirinto turvo, ofuscado pela membrana da água que escorria pela vidraça da janela, bem à frente dos meus olhos. Aquele chuá chuá contínuo foi um convite irresistível

Apreciar o som da chuva da varanda, com uma xícara de café, era uma boa terapia para equilibrar os anseios e abrandar a alma. Apoiei os cotovelos no suporte metálico que sustentava os vidros da varandae observei a rua lá embaixo, agora sob uma lâmina de água que escorria em fluxo espalhado e veloz. As entradas das galerias pluviais, entupidas pelo descaso e irresponsabilidade, não comportavam o volume de água. Isso era um grande problema que ocorria nos períodos chuvosos, na maioria das cidades. O volume de enxurrada aumentava rapidamente, arrastando sacos de lixos, papelões, embalagens de plásticos e outros descartes deixados indevidamente pelas ruas e praças da cidade. Era desolador ver o lixo sendo levado pelas chuvas para as tubulações, que os conduziam para os rios e, consequentemente, poluíam muito o meio ambiente.

Um homem parou em frente ao prédio para fazer uma entrega, de certo algum produto comprado no Mercado Livre. A chuva escorria em sua capa impermeável, ele não tinha pressa, enquanto outras pessoas passavam apressadas, principalmente as que não portavam guarda-chuvas. Uma senhorinha não conseguia caminhar com rapidez, a coitada tentava proteger a cabeça com um papelão de caixa, mas suas roupas estavam encharcadas. A chuva não cessava as atividades, as pessoas seguiam o cotidiano do jeito que podiam.

Aquele momento tão aguardado pelas chuvas trazia tanta alegria que as pessoas, em vez de reclamar, aceitavam de bom grado se molhar por completo. Foram quase seis meses de sequidão, queimadas nos campos e florestas, fumaças tóxicas com monóxido de carbono que afligiam o sistema respiratório, principalmente das crianças e dos idosos. 

Agora, ela chegara para regrar a vida, devolver o verde, propiciar o cultivo dos alimentos. Havia um sentimento tranquilizador entre as pessoas, a cidade recebia a chuva com entusiasmo, as árvores balançavam densamente mais verdes, como se agradecessem aos céus o derramar das chuvas. O ciclo chuvoso envolvia tudo que traz fartura e revigora a vida, possibilitava desenvolver os pensamentos e encaixa as palavras propiciando sentido na escrita que se propõe. A chuva que renascia o verde dos campos, era a mesma que devolvia a capacidade de dar forma e significado aos sentimentos e ideias. Ambas, em sua essência, são agentes de transformação e renovação.




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