Rosivaldo Casant
RABISCO OU PERSONALIDADE NO TRAÇO
Muitas pessoas já haviam elogiado a delicadeza e um traço diferente na minha firma, como os cartórios chamam nossa assinatura
RABISCO OU PERSONALIDADE NO TRAÇO
Um dia de um novembro, já bem distante, reservou-se para uma situação, no mínimo, engraçada. Quem lê meus textos há algum tempo sabe que já me aconteceu de quase tudo, mas o que passo a contar, foi demais (a bem da verdade, eu supervalorizo tudo o que ocorre de relativamente diferente em minha vida, não à toa, sou um ficcionista, muito embora, nas crônicas, procure estar o mais próximo do real possível, pois crônica não é conto, e quem conta um conto aumenta um ponto, diz o adágio popular, sobejamente conhecido.
Saí bem cedo de casa, em São Bernardo do Campo, para visitar minha mãe, na Zona Leste de São Paulo. Deixei o carro na garagem e fiz o que é comum à maioria dos cidadãos brasileiros: sola-ônibus-metrô-sola. Precisava mesmo “queimar algumas gordurinhas”. Encontrei minha venturosa genitora cheia de saudade de seu filho mais velho, tanto quanto eu estava dela. Ela me serviu aquele cafezinho gostoso que toda mãe sabe fazer bem. Conversamos bastante sobre as coisas que cercavam nossas vidas. Almoçamos e, como já havíamos combinado, saímos logo depois de lavarmos a louça para visitar uma amiga, passando antes pela casa de um senhor que me havia feito a gentileza de entregar um documento numa repartição autárquica estadual, restando-me apenas pegar a cópia do dito documento devidamente protocolado.
Pelo caminho, colocamos mais um pouco de conversa em dia. Ambos os endereços eram no mesmo bairro em que minha mãe morava. Depois de algumas ruas, cruzamentos de avenidas e uma praça, chegamos à casa de seu Paulo, que eu esperava estivesse nos aguardando, conforme havíamos combinados dias antes.
– É aqui, mãe.
Apertei o botão do interfone; alguns momentos depois, atendeu-me uma senhora e eu me apresentei, informando a razão de minha ida até aquela casa. Era a esposa de seu Paulo. Pediu que eu esperasse um pouco, pois iria pegar o documento para me entregar.
Estranhamos um pouco a demora da senhora, mas aproveitamos e relembramos algumas histórias do bairro e de muitos moradores, alguns muito antigos no lugar, que eu conhecia muito bem, desde toda a vida, pois ali nasci e cresci e, depois, parti. Tempo bom! Que fazer? O tempo não anda para trás, lógico! Pensei no meu pai, que falecera havia alguns anos; e no meu irmão, parceiro de peraltices e longe de nós, fazendo a vida na América. Fui chamado à realidade pela esposa de seu Paulo que abriu o portão e foi logo dizendo:
– O senhor me desculpa, – com voz insegura, um pouco trêmula; não entendi muito bem aquele jeito, pareceu-me amedrontada; e ela continuou – eu não conseguia encontrar o documento no lugar em que normalmente meu marido deixa. E, o senhor me desculpa, mais uma vez, e não repara...
A mulher estava pouco à vontade para me comunicar alguma coisa. Procurei ajudar:
– Pode dizer. O que foi? Ocorreu alguma coisa errada na repartição? A senhora me parece muito nervosa.
– Sabe... acho que meu marido vacilou em algum momento e deixou o seu documento em lugar de acesso fácil ao meu neto e ele rabiscou... Olha! – indicando o lugar do rabisco no documento.
Olhei. Quis rir, mas me contive. Veio à cabeça simplesmente pegar o papel e seguir meu caminho como planejado, sem mais nem menos, mas receei deixar aquela mulher mais aflita com a sensação de culpa e lhe disse:
– Não se preocupe, não há nenhum rabisco aqui.
– Como não? Olhe bem aqui!
– Não é rabisco, senhora, é minha assinatura.
A mulher ficou muito sem graça e deu um riso descolorido. Minha mãe também riu, contida. Eu? Eu achava que minha assinatura tinha personalidade, a minha personalidade. Muitas pessoas já haviam elogiado a delicadeza e um traço diferente na minha firma, como os cartórios chamam nossa assinatura. Mas a triste realidade é que naquele momento era tão somente um rabisco.
– Me desculpe! É que normalmente as pessoas não assinam essa via. — quis amenizar.
– Não tem nada. Fica tranquila. — Resignei-me.
E, para não a deixar mais embaraçada ainda e eu ... bem, também de certa forma frustrado, despedi-me, virei-me para mamãe e seguimos para o outro destino.
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