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São Paulo,21/11/2024

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Antonio de Paula Oliveira

Uma Heroína nas Sombras do Destino

Uma Avó na Reciclagem

Canal do Youtube
Uma Heroína nas Sombras do Destino Albertina com a Netinha reciclando nas Ruas .

    Antes que eu notasse qualquer sinal da presença dela no depósito, que também era a sua moradia, um grande barulho ecoou por todos os cantos. Fiquei parado em frente ao portão de gradil de ferro que estava aberto. Assustado, permaneci parado com o olhar atento a qualquer movimentação.

    Logo em seguida, ouvi o choro de uma criança que saia dos fundos onde, possivelmente, seria a morada dela, pois havia telhas de amianto sobre paredes de tijolos. O choro contínuo agora era acompanhado por gritos e palavrões. Percebi que havia mais pessoas ali dentro. Passado algum momento, veio o silêncio, não mais se ouvia o choro da criança, nem qualquer manifestação injuriada no mal dizer. Também me contive ali, parado com um pé na rua outro rente ao portão, receoso em chamá-la. Talvez não se lembrasse da conversa que tivemos no domingo anterior em frente a uma padaria, quando combinamos de nos encontrar em sua casa para uma entrevista. 

    Naquela manhã de domingo, ela estava acompanhada de duas menininhas, uma que aparentava ter seis anos e a outra três. A menorzinha ia sentada em uma cadeirinha improvisada na parte frontal superior da carrocinha, protegida por um pedaço de lona. A maiorzinha caminhava ao lado da avó e a ajudava recolher os materiais recicláveis e colocá-los dentro da carrocinha. Naquele momento, me propus a oferecer um lanche para as três, mas Albertina me mostrou os pacotes de bolachas que acabara de ganhar de uma senhora.

— Você pode comprar um frango assado para o almoço de domingo? – me pediu com voz de clemência.

—  Claro! — entreguei uma nota de cinquenta, mas ela retorquiu.

—  O frango assado custa 60 reais! Está tudo custando os olhos da cara, moço!

Depois fiquei observando-as descerem a R11 sentido a constelaria da Assis Chateaubriant. 

    Agora eu estava ali no portão, muito em dúvida se a chamaria ou iria embora, provavelmente aquele não era o melhor momento para entrevistá-la. Contudo, decidi ir em frente. Bati palma e a chamei pelo nome, logo apareceu um homem trajando apenas uma bermuda e um boné atravessado na cabeça.

— Bom dia! — eu disse.

— Bom dia. O que apetece aqui?

— Sou o Antonio de Paula, vim bater um papo com a Sra. Albertina, combinamos ontem.

—  Ah, bom. Espera um instantinho ai, vou ver se ela pode falar agora.

Não demorou muito, Albertina apareceu carregando a garotinha mais nova, ela vinha balançando as perninhas de lado segurando algo de comer com a mãozinha.

— Bom dia, Albertina!

—  Ah, pensei que não viesse.

—  Como vai? — perguntei.

—  Aos trancos e barrancos.

    Fiquei em silêncio até que ela me disse para sentar em uma cadeira de ripas, enquanto ela se ajeitava sobre um velho sofá com rasgões no revestimento. A garotinha permaneceu mastigando um biscoito de polvilho até se desprender do colo da avó e ir brincar com umas bonequinhas misturados com papelões em um canto.

    Albertina foi relatando sua história desde que deixou a região Norte para se mudar para Goiânia. Tinha a voz repousada em sentimentos desalentosos e o olhar desvanecido ao longe. Quando lhe perguntei se ela já havia trabalhado de carteira assinada em alguma empresa, contou-me que, ao chegar aqui em Goiânia, foi trabalhar na Arisco e por lá ficou até a indústria ser transferida para uma multinacional. Depois foi feirante na Feira Hippie, trabalhou em restaurantes e em uma lavoura de algodão. 

— Quando dei por fé, o tempo havia passado, não mais consegui voltar a trabalhar em nenhuma empresa. A vida nos dá muitas oportunidades, mas ela também castiga. Acho mesmo quem castiga é o homem, ele dá e tira quando bem quiser, ele é quem decide o futuro das pessoas, moço.

Ela se referia aos empresários. Sua voz não demonstrava rancor, apenas desesperança. Não precisei lhe fazer muitas perguntas, aos poucos, ela foi me dizendo tudo que lhe acontecera no decorrer do tempo. Muitas passagens desafiadoras, carregadas de lutas e sofrimentos. Em momento algum ela alterou a voz, mas seus olhos se esvaeceram desconsolados. Quando lhe perguntei sobre as garotinhas, ela olhou para o Jackson, e se tornou pensativa.

— Você não quer falar sobre elas?

— É uma história triste, difícil de falar.

  Ficamos em silêncio por algum tempo, depois ela se ajeitou no sofá e olhou para mim.    

— Cuido das meninas desde que os pais delas partiram para longe em busca de emprego, deu tudo errado para eles, o pai das meninas vadiou por caminhos errados, aí deu treta, o coió defrontou com os homens da P2 e levou um balaço na cabeça. Hominho atoa, vivia às custas da minha filha, a pobrezinha dava duro para sustentar aquele sujeitinho. Minha filha era desamparada de marido. Até hoje, ela não conseguiu voltar para cá, aqui é o lugar dela, eu preciso dar uma ajudinha para ela. A menorzinha sente falta dela, de vez em quando, chama pela mãe.   

     Não disse nada, meu silêncio se deu pelo embargo da voz, acometido por uma emoção pesarosa diante daquele relato. Apenas levantei-me para abraçá-la ao ver seus olhos cheios de lagrimas.

    Jackson era o nome do companheiro de Albertina, o homem corpulento de voz áspera, se mostrou educado e calmo diante de nós. A dado momento da entrevista, ele me relatou também um pouco da sua história. 

— Esse serviço de cata de materiais é muito custoso, ganhamos pouco e ainda somos mal tratados nas ruas. Tem muita gente que vira a cara para nós, não deixa a gente usar o banheiro. Muitas pessoas não entendem que é um trabalho normal e honesto, muitos de nós estão nas ruas com as carrocinhas por falta de oportunidades. Eu mesmo já trabalhei fichado em várias empresas, com esse novo governo, o trem degringolou de tal maneira que não sei onde vamos parar. Já bati perna por todo lado atrás de trabalho com carteira assinada, mas não consegui. Não podemos parar de trabalhar, se parar a gente passa fome e vira morador de rua. Mas também tem pessoas boas que oferecem cestas básicas, às vezes dão um dinheirinho e até um prato de comida.

    Fiquei acometido por uma emoção pesarosa diante daquele relato. Me despedi deles e saí rumo ao portão de gradil. Antes de entrar no carro, ainda olhei para trás e vi a garotinha brincando com uma bonequinha. 

    Encontrei Albertina vária vezes depois desse encontro. Certa vez, levei duas sacolas de roupas usadas para sua família. Outras vezes também lhe dei algumas pequenas contribuições em dinheiro. Em uma tarde, avistei-a em uma praça, seu carrinho estava cheio de latas, garrafas e papelões. Carregava as risadas das netas, os sorrisos e a inocência das garotinhas. De certo, os corações delas batiam juntos na cadência das ruas, reciclando histórias e esperanças.   


Canal do Youtube -“umdiacomoguerreiro” - Além das sombras: a Jornada dos Catadores de Recicláveis. Foram as gravações mais emocionantes e difíceis que fizemos. 









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