Antonio de Paula Oliveira
Das Ruinas da Morte, Um Olhar de Esperança
Em 1987, Goiânia, se tornou o epicentro do maior desastre radiológico já registrado, quando uma cápsula de césio-137, descoberta por dois catadores em um prédio abandonado, espalhou contaminação pela cidade. O incidente mobilizou autoridades, especialistas e voluntários desesperados para controlar a radiação e proteger a população, enquanto boatos e pânicos cresciam. A tragédia trouxe mortes e um estigma duradouro, que transformou a rotina dos goianienses e marcou a história da capital Goiânia.
Naquele final de semana de setembro de 1987, Goiânia estava vibrante. A cidade se encheu de cores e sons com o Grande Prêmio Brasil de Motovelocidade, realizado no Autódromo Internacional Ayrton Senna. O rugido das motos de 500 cilindradas ecoava pela capital, acelerando a rotina dos goianienses e encantando milhares de visitantes do Brasil e do mundo. As equipes milionárias exibiam suas roupas coloridas e os famosos bonés "Aba Curva Oficial Piloto", lançando moda. Nos bonés, não faltavam logotipos dos times dos Estados Unidos, com o Boston Red Sox e o Los Angeles Dodgers sendo os preferidos dos entusiasmados admiradores de velocidade. Jovens desfilavam nas ruas de bonés, óculos escuros, garotas vestiam camisetas com nozinhos acima do umbigo, em um clima festivo que marcava o terceiro ano consecutivo de velocidade, com alegria e celebração nas ruas da Capital Verde do Brasil.
Mas, após o fim de semana de festa, a rotina voltou a se impor. A segunda-feira nos pegou de surpresa. Lina e eu levantamos com certa dificuldade, tentando sacudir a preguiça e enfrentar a "dureza" da segundona. Ainda era 28 de setembro, e faltavam mais de dois meses até as tão esperadas férias. Mesmo com a secura típica do mês, a primavera já tingia Goiânia, com ipês, flamboyants e acácias floridas quebrando a aridez da paisagem com cores vibrantes e fragrâncias.
Descíamos a Avenida República do Líbano, em direção à Avenida Araguaia, quando percebemos uma movimentação atípica. Pessoas andavam apressadas e havia policiais, bombeiros, médicos e outros homens vestidos de branco, com rostos e mãos cobertos. Algo grave acontecia. Passávamos por ali todos os dias, mas nunca vimos tamanha concentração de pessoas. Ao nos aproximarmos do antigo Centro Radiológico de Goiânia, um prédio abandonado, ouvimos alguém ordenar que todos se afastassem; o trânsito já estava sendo desviado. Ali, sem que ninguém soubesse na época, começava o que seria o maior acidente radiológico do mundo: uma cápsula de césio-137 havia sido encontrada e rompida por dois catadores de recicláveis nas ruínas do prédio. Era o início de uma tragédia que provocaria pânico, mortes e estigmatização contra Goiás.
No dia seguinte, 29 de setembro, a Secretaria de Saúde de Goiás tomou conhecimento da gravidade da situação. O Secretário de Saúde, Antonio Faleiros, anunciou as primeiras providências e foi à televisão para acalmar a população. Mas o pânico já se espalhava. Goiânia, antes uma capital quase desconhecida, tornava-se o centro das atenções no mundo inteiro. A imprensa tentava levar informações ao público sobre o maior acidente radiológico já registrado, mas o acesso limitado à área e a própria incerteza dificultavam a cobertura. Enquanto isso, a mídia sensacionalista divulgava boatos que só aumentavam o medo.
As desinformações se tornaram um fardo para a população, que sofria com a confusão e o medo. Corriam rumores de que o pó esbranquiçado, que à noite brilhava em azul, havia contaminado o solo e a água da cidade. Diziam ainda que o conteúdo da cápsula, encontrado pelos catadores Roberto e Wagner, fora distribuído como uma “curiosidade” entre amigos. Outros boatos sugeriam que o ar de Goiânia estava irradiado, contaminando todos ao redor. Na realidade, apenas algumas áreas foram diretamente afetadas, aquelas onde o césio foi manipulado e espalhado. As autoridades isolaram esses locais para conter a propagação, mas o material radioativo já havia sido vendido a um ferro-velho, do Devair Alves, que repassou fragmentos para outros dois depósitos, aumentando o número de pessoas e áreas expostas à contaminação. Entre as vítimas mais trágicas estava Leide das Neves, uma menina de seis anos que brincou com o pó azul que seu pai, Ivo, trouxera no bolso para casa. Moradores das redondezas, intrigados pelo brilho misterioso, se reuniram para ver a luz do “pó da morte”. As pessoas que apresentavam sintomas de náuseas, vômito, diarreia e dores pelo corpo entravam em pânico e eram imediatamente isoladas para tratamento.
Fundaçâo Leide das NevesLogo, especialistas foram acionados. O físico Dr. José Júlio Rosental, de renome internacional, foi chamado para coordenar o trabalho e tranquilizar a população. Locais de alta irradiação foram isolados, e 249 pessoas contaminadas receberam atendimento médico. Elas foram alojadas em unidades da Febem e em grandes tendas instaladas no Estádio Olímpico, no Centro de Goiânia. Por muitos dias, milhares de pessoas formaram filas do lado de fora do estádio Olimpico para medir os níveis de radiação. Lina e eu aguardávamos na fila, observando os rostos apreensivos, com olhares tristes e desconfiados, enquanto o sol de setembro ardia sobre nós. As 14 vítimas em estado mais grave foram transferidas para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Entre elas, quatro faleceram: a pequena Leide das Neves, sua tia Maria Gabriela Ferreira e os catadores Roberto e Wagner Mota Pereira. Outros, embora sobrevivessem, carregariam sequelas para o resto da vida.
No dia 19 de outubro de 1987, um mês após o acidente, centenas de toneladas de materiais contaminados foram seladas em tambores especiais e transportadas em contêineres para um depósito construído em Abadia de Goiás, na região metropolitana, com revestimento de concreto e chumbo para conter a radiação.
Muitos heróis se destacaram nessa história: médicos, enfermeiros, assistentes sociais, militares e voluntários que enfrentaram o desconhecido para proteger a população. Os goianienses demonstraram grande solidariedade, doando medicamentos, moradia e, sobretudo, apoio humano. A imprensa local também se posicionou de maneira digna, ao contrário da nacional, que frequentemente publicava notícias sensacionalistas e desanimadoras, sem compromisso algum com a realidade.
Enfim, chegou o dia da nossa viagem. Lina e eu partimos de Goiânia e, ao chegarmos ao Aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, sentíamos uma leveza, como se finalmente estivéssemos livres para respirar. Estávamos animados com a ideia de reencontrar familiares, visitar cidades históricas e nos perder pelas montanhas de Minas. Mas, ao pegar um táxi, o motorista nos perguntou de onde vínhamos. Ao saber que éramos de Goiânia, recusou-se a nos levar. Aquele momento foi um golpe profundo; a discriminação, alimentada pelo medo e pela ignorância sobre o césio-137, estava fora de controle. As pessoas temiam que carregássemos a radioatividade conosco, e Lina, entristecida, deixou lágrimas silenciosas caírem enquanto olhava para o horizonte. Puxei-a para perto e, em tom animado, tentei confortá-la: “Bem-vinda à minha Minas Gerais! Ou melhor, à nossa Minas Gerais! Sorria para a foto, viva a vida!”
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