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São Paulo,14/11/2024

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Antonio de Paula Oliveira

Entre Cargas e Risadas: Um Caminhoneiro Engraçado


Entre Cargas e Risadas: Um Caminhoneiro Engraçado

Ajeitou o boné verde e amarelo da Hulubrax na cabeça, esfregou os olhos, lacrimejados por conta da poeira do dia anterior, e chamou os companheiros de luta para mais um dia de trabalho. Não deu nem tempo para gargarejar o gengibre com hortelã para retirar o gosto amargo do conhaque Dreher. O gosto era de tábua de chiqueiro, dizia ele. 

Pesaroso pela extravagância, culpou o Hugo do Rigo’s bar.

— O Hugo me tapeou ontem à noite, me contando casos da gloriosa Filadélfia do Tocantins, enquanto eu ia enchendo a cara. Juro por Deus do Céu que nunca mais bebo essa porra do caralho, parece que um trator passou por cima de mim e ainda deu ré.

— Fala isso não, Jairo! Ressaca é igual briga de marido e mulher, a raiva é passageira 

— Quero ficar ceguinho se eu beber essa desgraça de novo! Isso é pior que soda cáustica, prefiro encher a cara de pinga. Velho barreiro, pitu ou qualquer outra engasga gato. 

— Quero ver você negar a beber se a Beré, do predinho, encher o copo de Dreher para você, ainda mais se ela debruçar sobre a mesa e esfregar os peitões na sua cara. Do jeito que você arrasta asa pra ela, é bem capaz de tomar o galãozinho inteiro. 

Um homem se aproximou do Rubens e negociou o valor do serviço, mas o Jairo, que ouvira de longe a negociação, não concordou. Chamou o homem, que já havia se retirado, para renegociar o valor estipulado. Depois de uma breve conversa, com gestos bruscos e alterações nas falas, um novo valor foi cobrado: o dobro. O homem ficou possesso e perguntou bem alto:

— Quem manda na porra desse caminhão? — Se dirigindo ao Senhor Benedito, considerando a seriedade confiável dele. 

O senhor Benedito, calmamente retirou o boné da cabeça, ergueu o braço segurando o boné, direcionou ao Jairo e falou com firmeza e rapidez:

— Acabou de falar com ele.

Lembrou da noite anterior, no bar do Hugo, sentiu o gosto etílico na boca, coçou a cabeça por baixo do boné e estacionou o aspirado 11-11 amarelo solar, no pátio da empresa, bem próximo da montanha de entulhos, 

— Vamos deixar de conversa fiada e trabalhar, hoje tem muito entulho para carregar, acho que nem daremos conta de carregar tudo. O material é gesso com arame, você mete a pá e não pega nada, é igual tentar pegar macarrão com colher. O Vei Bené garantiu ao homem que contratou o caminhão que vamos deixar o pátio todo liberado, ainda hoje. Mas, de acordo com os meus cálculos, não conseguiremos carretar tudo, e amanhã teremos o casamento da Milaine e do Rodrigo, com churrasco e cervejada lá na fazenda do Marceli.

— Temos que carrear tudo hoje, amanhã eu só vou festar, comer carneiro assado e tomar cerveja de graça — disse Rubens.

— Ô Rubens, nós não podemos deixar o Véi Bené na mão, ele é bom de mais para todos nós, se não conseguirmos carrear tudo hoje, teremos que terminar amanhã. Depois que o Jairo cobrou esse preço absurdo, não dá para adiar a tarefa.

  — Estou matutando aqui, nós vamos descarregar naquele terreno vago, ali no Sudoeste, em frente ao Santa Maria. É bem mais perto do que os aterros que ficam longe, tem muito entulho despejado, uns 10 caminhões não vão atrapalhar em nada.

— Não podemos correr esse risco, Jairo, depois que aquela área recebeu entulhos, ela se tornou vigiada pela Agência Urbana e pelos moradores dos prédios vizinhos. 

— Onde você quer que descarregar o entulho, Sidimar?

— Lá no aterro do Canedo, uai!

— Nesse caso, nós não vamos conseguir retirar todo o entulho hoje, 

— Vamos tentar, se não der para retirar tudo hoje, podemos terminar amanhã.

— Amanhã, não! Cedinho rapamos o pé para o Buriti, a festa vai começar às 10h.        

— Vamos trabalhar, moçada. Não me façam passar vergonha, deixam de lerdeza e papo mole. Já conversei com o Véi Bené e ele vai pagar a rodada no final do dia.

— Beleza, Jairo. Dessa vez, seu intrometimento foi proveitoso

— Sidimar, presta atenção em como o Catatau joga o entulho na caçamba. Ele tem que dar pulinho para alcançar a altura.

— É uma judiação contratar um sujeito nanico para encher caminhão de entulho, Jairo!

De fato, era cômico ver o baixinho pulando para cima com a pá cheia de entulho. Jairo subia na boleia do caminhão todos os dias pela manhã, rodava pelas ruas da capital como se estivesse dirigindo um carro de passeio, com muita maestria. O trambolho guerreiro tinha mais hora de rodagem do que o velho trem de Minas. Pelas ruas, o papo de Rubens, Sidimar, Catatau e Jairo se encontravam nas meninas do predinho, em bebidas, e no Bota Fogo. Botafoguense mesmo era somente o Jairo, mas os outros não o enfrentavam. Os quatro na boleia do caminhão iam fazendo da dureza do trabalho momentos de zombação, tudo que viam da janela do caminhão tirava sarro de quem estava nas ruas.

— Ô bonitona, aperta o passo! Faixa de pedestre não é passarela, mas se quiser desfilar lá em casa, hoje à noite, será de bom grado.

— Motorista folgado, toma jeito! — esbravejou a moça ao terminar de atravessar a faixa.

Ao término do dia, já cansados, perceberam que o esforço não fora suficiente para terminarem o transporte de todo o entulho. Voltando para a casa, foram combinando como fariam para transportar o restante do entulho.

— Amanhã, vamos sair antes do nascer do sol. Temos que colocar aquilo tudo em uma viajem.

— Acho difícil caber numa viagem. Você olhou a montanha que falta, Jairo?

— Vai ter que caber, se precisar vamos colocar as tábuas nas laterais da caçamba.

— Ô Jairo, nesse caso nem precisa trazer o Catatau, o coitado não vai alcançar a altura da caçamba!

— E tem outra coisa, vamos despejar o entulho na área do Santa Maria lá no Sudoeste.

— Ficou doido, Jairo!? O povo lincha nós!

— Deixa comigo, Rubens!

No dia seguinte, antes das 5 da manhã, todos já estavam de pé para a última viagem antes da festa de casamento, que seria naquele sábado, lá na fazenda do Marceli em Buriti Alegre.

— Quero dar uma coça de cinto no engenheiro que fez essa viela da perimetral, nunca vi fazer viela como essa! Isso aqui parece uma cobra rastejando na areia.

Depois de carregado, a lona passava acima da boleia de tão cheio que ficou. O Mercedes Bens trafegou devagar pelas ruas da capital, ainda bem cedo, com pouco tráfego. Conforme a decisão do Jairo, o destino era mesmo a área do Sudoeste em frente aos prédios do Santa Maria. Parados em um semáforo, Jairo olhou para o lado e deparou com um motorista de uma van de transporte de prefeitura, usando uma camisa do Flamengo. Isso foi logo após o Bota Fogo ter goleado o Flamengo por 4x1

— Ô flamenguista, como ficou o jogo do Bota Fogo e Flamengo?

O motorista respondeu com palavras da primeira classe do baixo calão.

— Segue o líder, amigo, que seu humor volta ao normal.

No momento em que o caminhão foi basculhado na área em frente aos prédios do Santa Maria, apareceram gente de todos os lados. Muitos com pedaços de paus, cabos de vassouras, pedras e outros objetos. Entre gritarias, empurrões e ameaças, a balburdia estava feita.

— Quem é o responsável por essa joça? — perguntou um senhor de cabelos esvoaçados aos gritos.

— Sou eu — disse Jairo.

— Vocês vão pegar toda essa porcaria agora! — dizia o homem com certa valentia resguardado pelos demais, que eram mais de 50.

— O senhor precisa se acalmar, nós podemos retirar na segunda-feira sem falta, como todos podem ver, somos locados pelo DENIT— disse Jairo, mostrando a placa amarela fixada na parte dianteira do caminhão que permanecia ali, mas já sem vínculo. 

– O DENIT foi quem mandou vocês descarregarem isso aqui? – perguntou uma senhora.

– Não, quero dizer... Apenas que temos um compromisso sério com todos vocês, de que segunda-feira estaremos aqui para retirar todo o entulho que despejamos. Hoje teremos um casamento em família, lá em Buriti Alegre, inclusive sou padrinho de casamento da noiva, que é minha sobrinha.

– Negativo! Vocês só saem daqui com esse caminhão carregado com essa porcaria que trouxeram para cá – replicou outro morador do prédio com tropeços na fala.

O Rubens argumentou com calma e firmeza na fala, através de uma linguagem filosófica e utilizando metáforas nas frases. Sidimar queria afrontá-los. 

 – Povinho bunda mole, até parece que são os donos do terreno. 

Catatau permanecia quieto encostado na boleia. 

– Vocês podem confiar, estou dando a minha palavra, vocês acham mesmo que eu iria perder meu emprego de 10 anos no DENIT?

O homem de cabelos esvoaçados reuniu com outros moradores e, juntos, decidiram dar um voto de confiança aos trabalhadores.

– Suba na boleia e abaixa o hidráulico da caçamba, Catatau.

– Ô Jairo, o hidráulico enguiçou!

– Tira o joelho do estrangulador, criatura de Deus!

   Foi uma risaiada do Rubens e Sidimar!

– Psiu! O povo ainda está por perto.

– O mais incrédulo foi ouvir o Jairo falar que é motorista do DENIT há 10 anos.

– Essa foi demais! – retrucou Sidimar.

Enquanto o Mercedes Bens aspirado urrava pedindo uma sexta marcha, Jairo, Rubens e Sidimar iam tagarelando alegre pela rodovia. Talvez, pensou ele, naquele dia tivesse aprendido algo além das rotas e do tráfego. 

Negociar, afinal era também parte do seu trabalho. E se o entulho ficou para trás, o caminho à frente estava livre e recheado de expectativas para uma divertida festa de casamento. Pelo menos até o próximo sufoco.




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